“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo ‘o homem cordial’ (...) A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de idéias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades...”
(HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Companhia das Letras, págs. 146 e 151. Grifo nosso.)
O presente artigo objetiva desenvolver em sua narrativa uma breve ponderação sobre a figura do “homem cordial” e a formação do espaço público no Brasil. Num primeiro movimento, será comentado brevemente aspectos pessoais da figura de Sérgio Buarque de Holanda, seguidos de uma discussão conceitual sobre o significado da personalidade brasileira tomada como “cordial” pelo autor. O segundo movimento será a composição de um quadro de idéias que relacionem os vícios políticos da personalidade “cordial” brasileira - contrastada na obra Raízes do Brasil - e a formação do espaço público no País. Por fim, será esboçado um panorama diferenciado, que se demonstra como percursor de novas perspectivas políticas para o Brasil, diante de um novo horizonte político, promissor em certas peculiaridades.
Inicialmente, demonstra-se muito interessante e correto reconhecer o olhar inovador do autor à luz do Modernismo, movimento nacional que alimentou com sua arte e engenho, fazendo parte da crítica artística a qual engrenava a presente iniciativa. Seu técnico e diferenciado bisturi crítico, com nítidas nuances de contraste e perícia de jornalista, reproduz com significativo reconhecimento o que podemos chamar de pretensa historiografia do Brasil. Em 1958 assumiu a cadeira de História da Civilização Brasileira, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), e como notório intelectual da História, pensou os desdobramentos político-sociais contidos nos empoeirados e recentes cenários nacionais, desde a distante Descoberta até a, mais próxima, República; publicando artigos, livros e notas técnicas, apreciadas e discutidas pelo seu mérito descritivo e argumentação legitimamente fundamentada. Comenta seu colega de academia, Antônio Cândido, em linhas bem humoradas:
“A esta altura, decênio de 50, a nossa amizade já estava consolidada e a nossa convivência era constante, como foi até sua morte. Mencionarei (...) um fato pitoresco para mostrar como nos divertíamos, porque inventávamos diários apócrifos de figurões, elaborávamos biografias imaginárias, fazíamos longos exercícios (...) ― de acordo com aquele enorme senso de humor que era uma de suas constantes. O caso foi que estando ele [Sérgio Buarque de Holanda] ensinando na Itália, onde ficou de 1952 a 1954, eu resolvi lhe escrever uma carta como se fosse de trezentos anos antes, mas dando notícias de coisas presentes. A linguagem era aquela tosca e irregular das Atas da Câmara, Autos de Visitação, etc. Havia problemas difíceis de resolver, como, por exemplo, dar uma notícia sobre Rodrigo Melo Franco de Andrade, nosso grande amigo, que era mineiro, mas Minas ainda não existia... Então inventei a fórmula: ‘natural de Cappitania das Minas que estam pera se achar’. Anoto isto para contar a grande inventividade dele na resposta. Esta veio em mãos, trazida por um amigo comum que viajava de avião. De que maneira relatar este fato no século XVII? Sérgio escreveu: ‘He portador desta Dom Paulo Mendes Dalmeyda que se passa a esa Comquista na máquina Passarola, que ha de inuentar a seo tempo o Padre Berto Lameu de Guzman da villa de Santos nessa marinha’.
Daí se desenvolveu uma correspondência que, devo dizer, era bastante picante. Mas a certa altura eu não agüentei o tranco, porque, estando em Nova York, creio que em 1966, ele me respondeu em inglês do século XVII! De outra feita, quando estava no Chile, mandou em versos uma admirável Carta Chilena, que Manuel Bandeira publicou, porque ele lhe mandou cópia (é a única divulgada). E mais tarde, chegou a mandar uma em latim, desnorteando completamente a minha capacidade que parava no Português de Piratininga.”
(CANDIDO, Antonio. Amizade com Sérgio. Revista do Brasil, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 6, p.133, 1987. Os grifos são nossos).
O conceito de homem cordial, desenvolvido pelo autor, reflete um vício da personalidade brasileira e não uma virtude de polidez, ou etiqueta, como pensam positivamente alguns. Trata-se do concurso de se nutrir uma intimidade, um vínculo ou laço de amizade perversa - não de inspiração social comum, como um rito interpessoal cotidiano, mas de interesse individual e clientelista, que visa sempre a troca de favores e a vantagem. Esse tipo, rótulo de costumes e cultura politica criado pelo autor, se adensa quando trazemos à superfície as tipologias contrastantes desenvolvidas na obra Raízes do Brasil. O trabalhador e o aventureiro, o semeador e o ladrilhador, a cultura ibérica e a cultura brasileira, o rural e o urbano, o burocrata frio e o politiquesco patriarcalista, enfim, são núcleos de comparação mergulhados na tipologia da cordialidade.
O aventureiro, mascate ou emboaba, trazia no bornal o fumo cortado, o litro de aguardente e a munição necessária para suas bandeiras: sua perspectiva de trabalho consolidava-se mais na conquista do status fácil, sem esforço de qualquer ordem, do que no trabalho notório, diuturno junto às plantações de subsistência ou na construção das cidades. Para nutrir sua potencial “indolência” traça relações de amizade, conluios, que lhe garantam seguramente o resultado sem muito suor. De forma objetiva, o ideal do aventureiro “será colher o fruto sem plantar a árvore...”, será aquele que na economia agrária usa o fogo para devastar e depois replantar, semear - assim como os índios -, também nutrindo a predação da lavoura. A cordialidade, e o transporte da permissividade com relação à ética do trabalho organizado, será o esquadro que traçará as imediações das cidades, que de forma arquitetônica, refletirão a negligência da ética da aventura.
Tomando como régua norteadora a narrativa de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque, o espaço público brasileiro foi criado sem nenhuma inspiração histórica análoga aos países de tradição política de tempo maior - ou de potencial tendência democrática presente - tão pouco ilustrado pela luta popular na garantia de direitos civis. Tratou-se tudo de um arranjo aristocrático, interessado na manutenção do quo, e dos laços políticos clientelistas, amplamente inspirados na dialética da cordialidade.
Neste cenário, não se definia nitidamente o contraste entre a coisa pública e a coisa particular: como tanto se comenta, o público e o privado não se separava de forma certa, pelo contrário, se constituia de uma matriz de cores misturadas, uma palheta contrastante e incerta entre a visão da burocracia professada nas faculdades dos filhos da oligarquia e a realidade política construída pelos mesmos, da forma que bem achavam conveniente aos processos da tradição. Até a superficialidade religiosa, o culto ao menino Jesus que samba com o povo, o discurso diminutivo, são comentados pelo autor como exemplos desse privado inchado, grandemente presente na mentalidade do brasileiro.
Hoje, as perspectivas que se traçam diante de um Brasil novo, com sombras mais visíveis de desenvolvimento são - certamente - diferenciadas com relação às idéias da obra de Sérgio Buarque. Embora ainda sejamos apegados à tradição, e os laços clientelistas e cordiais ainda sejam verificados no cotidiano brasileiro - como uma corrente que ainda nos prende nas lógicas patrimonialistas do passado - uma forte cultura política de participação e de mobilização social se avizinha, e um mundo onde o controle social começa a se empoderar toma parte no cenário político. As iniciativas que tornam o Estado mais tecnicamente munido e efetivo, ganham corpo desde as políticas recentes e o equilíbrio monetário advindo do plano Real: o panorama promissor construído entre a efetividade do Estado e a pró ação de seus cidadãos começa a objetivar no Brasil uma nova raíz, uma nova cultura política. Será um dia chegado o momento onde o povo brasileiro, indiferente de sua paradoxal “incompletude e supercompletude” cultural, escolherá a sua política: é neste momento que deve estar pleno de certezas sobre que futuro construirá... Ou o futuro da reprodução do passado, patrimonialista e individual, ou o futuro das novas idéias, da participação - com resiliência e destemor - e da construção conjunta de uma nação universalista com sua ética de trabalho que não seja “copiada” dos países tradicionalmente burgueses, mas uma ética própria que não seja perversa para seus concidadãos.
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