“É coisa preciosa, a saúde, e a única, em verdade, que merece que em sua procura empreguemos não apenas o tempo, o suor, a pena, os bens, mas até a própria vida; tanto mais que sem ela a vida acaba por tornar-se penosa e injusta”
Michel de Montaige, ensaios
E, em 1988, ficou decretado que a saúde passaria a ser um direito incondicional a todos os brasileiros. Seria ela parte dos direitos sociais básicos a que todos os cidadãos desse país verde e amarelo teriam acesso. A sua garantia seria realizada, não mais pela União, mas pelos municípios, através de um Sistema Único de Saúde e de recursos provenientes do orçamento dos três entes, mobilizando e responsabilizando, assim, o Poder Público nesse objetivo. Ela –a saúde- ganhou, inclusive, uma seção exclusiva na Constituição dentro do Capítulo da Ordem Social. A iniciativa privada é livre para complementar a atuação do Estado, dentro de determinadas condições.
Hoje, em pleno 2010, é claro para toda a população –os que utilizam e os que não utilizam o sistema de saúde público- que as palavras escritas no Capítulo II (Direitos Sociais), na Seção II do título VIII, ou em qualquer outra parte que mencione a saúde, se encontram num patamar bastante distante daquele esperado por elas. São semanais as denúncias sobre irregularidades, as filas anuais para que atendimentos sejam realizados, a falta de espaço, equipamentos e/ou pessoal, a baixa estrutura dos hospitais públicos, entre muitas outras.
Na tentativa de efetivar o problema da saúde pública paulista, o Governo do Estado de São Paulo entregou 22 hospitais públicos (dado este de junho de 2010) para Organizações Sociais de Saúde (OSS), que teoricamente são instituições de direito privado, sem fins lucrativos, regulamentadas pela Lei 9637 de maio de 1998. Supõe-se que elas são exemplos do princípio de publicização do Estado: entrega-se a máquina pública ao terceiro setor, de forma a fazer o setor privado ser transparente. Lá, é permitido às OSS participar de atividades dirigidas à saúde, através do estabelecimento de um contrato de gestão, firmado pelo Poder Público e dispensado do procedimento de licitação. Assim, as OSS recebem recursos do Estado para realizarem as atividades que supostamente deveriam caber ao Governo. O argumento utilizado é utilizar o regime mais flexível da administração privada para agilizar os atendimentos e aumentar a eficiência. A discussão que se coloca nesse ponto é um tanto complexa e carrega argumentos prós dos dois lados: vale a pena “terceirizar” o serviço público? Antes de qualquer coisa, vale explicar que o sentido utilizado nesse texto de “terceirização” não é aquele disposto na Lei 9074/95, que prevê a ‘compra’ de serviços públicos por entidades privadas através de processos licitatórios, mas o de “atribuir” a terceiros (no caso, às OSS) um dever que deveria ser suprido pelo Estado.
Em junho deste ano, a revista Caros Amigos fez uma denúncia contra o que chamou de “leilão da saúde pública”, e mostrou, através de entrevistas e investigações que essa transferência da ação estatal para as Organizações Sociais tem se mostrado um pouco mais problemática do que parece pela lei e pela Constituição. Resumidamente, as denúncias se baseiam em instabilidade dos trabalhadores e assédio moral; problemas no sistema de metas imposto pelo contrato de gestão, o que acaba prejudicando as necessidades locais da população, como por exemplo, cura de patologias (como hipertensão, diabetes) no lugar de prevenção; há contestação por parte de juristas e especialistas quanto à constitucionalidade da aplicação da Lei 9637/98 e da capacidade do Estado em fiscalizar os gastos dos serviços nas unidades; tem havido o que se chama de “quarteirização”, fenômeno no qual as OSS contratam outras empresas privadas para a realização de pequenos serviços.
Do outro lado, o superintendente de uma rede de hospitais sob comando das OSS afirma que as metas não são cobradas dos funcionários e, portanto, não afetam na estabilidade; que o contrato de gestão é um instrumento de controle social; e que as OSS conseguem produzir mais do que o setor público.
Diante de tudo isso, fica a questão colocada no meio desse texto: vale a pena o Estado entregar o serviço de saúde, direito este tido como um dos mais importantes e incondicional à terceiros? De acordo com a professora Maria Luiza Levi, não. Com seu doutorado (pela USP) focado nesse assunto, ela afirma: “…(o Estado) não acompanha, não fixa salário, não controla como se paga o salário, o que se compra. Teria que haver um jeito de mensurar o preço desse serviço realizado nas OSS e isso não é feito. No meu estudo eu consegui medir que o preço unitário não é padrão, cada OSS trabalha com um preço diferente da outra em serviços que deveriam ser compatíveis. Isto gera uma dificuldade na hora de regular o repasse financeiro para estas unidades, neste modelo você não tem como mensurar o custo. E, teoricamente, para o Estado comprar este serviço, ele teria que ter uma forma de analisar o ‘valor’ desse ‘produto’. Mas, você não tem como saber se é muito mais econômico, se é menos.” (Caros Amigos, Edição 162/2010)
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